sábado, 4 de setembro de 2010

António Botto no Brasil - 3, de António Augusto Sales


Brasil, Meu Irmão!

(continuação)

O Brasil atravessa um período conturbado resultante da ditadura de Getúlio Vargas (1853-1954), afastado do poder em 1945 por um golpe militar. O general Eurico Gaspar Dutra será eleito presidente nesse mesmo ano e elaborada nova constituição. A Grande Guerra terminara mas deixara feridas espalhadas por todo o lado e o Brasil não era excepção. A economia abre-se à importação de produtos e a inflação sobe imparável, as reservas de dólares e de libras são desvalorizadas e o desastre económico só é contido pelo aumento da exportação e do preço do café. Época pautada por frequentes perturbações sociais, características paralisações de trabalho, manifestações de rua, actividades sindicais que perturbam a ordem enfraquecendo politicamente o governo e conduzindo-o ao uso da força. O estado militar corta relações diplomáticas com a União Soviética (URSS) e ilegaliza o Partido Comunista Brasileiro prendendo e perseguindo muitos dos seus militantes. Em cinquenta a nação mergulha em eleições gerais e, por ironia da vontade popular, o antigo ditador Getúlio Vargas acaba por ser eleito Presidente da República por esmagadora maioria. Sol de pouca dura! Quatro anos após a oposição conservadora exige a renúncia e Getúlio, angustiado e incapaz de resistir às pressões políticas suicida-se no dia 24 de Agosto de 1954.

Monteiro Lobato era prestigiado escritor em 1947, ano em que começou a ser editada a colecção das suas obras completas num total de 13 volumes. Viveu como se deslizasse numa montanha russa em surpreendentes flexões do destino como editor, empresário, adido comercial do Brasil em Nova Iorque e até preso político e incomunicável, em 1941, na ditadura de Getúlio Vargas. Quando António Botto chega a São Paulo, Monteiro Lobato, que viria a falecer em 1948, está em condições de o apresentar aos altos representantes da finança paulista, escritores e alta sociedade, ajudando-o a entrar pela porta grande em recitais ao lado de Joracy Camargo e Procópio Ferreira e sessões de autógrafos em diversas salas. São Paulo se não lhe abriu os braços como o Rio de Janeiro também não os fechou.

O casal Botto começou por instalar-se no Hotel S. Bento, na Rua Rogério Badaró, nº 504, apartamento 2119 no 21º andar, onde a Companhia Óscar Rudge entregava as encomendas de resmas de papel feitas pelo Dr. António Botto Almada, recuperando assim a «veleidade de aristocrata» que João Medina refere (Morte e Transfiguração de Sidónio Pais, nota nº 99, pág. 164, Edições Cosmos, Lisboa, 1994) como «tendo chegado a pôr um Almada entre parêntesis, a seguir ao nome, nos cartões de visita». Por essa altura realiza conferências e representações de poemas seus na sala Camões do Centro Português, no Clube Portugália, na Sociedade Brasileira de Alimentação, na Boite Restaurante São Paulo e no Museu de Arte com afluência de público. Tinha trabalho regular na Rádio Bandeirantes com o programa Portugal Canta, transmitido aos domingos, pelo que recebia 1000 cruzeiros por emissão. Durante todo o período de São Paulo estabeleceu contratos com a Rádio Tupi, Rádio Difusora de São Paulo e Rádio Cultura onde manteve Almas e Povos, três dias por semana, que lhe rendia 500 cruzeiros por audição, pagos adiantadamente; aparecia assiduamente em jornais com artigos, crítica, contos, crónicas e poemas. Não sendo rico arrecadava o suficiente para uma vida medianamente confortável como se deduz da sua relação com a Imprensa Gráfica da Revista dos Tribunais a quem pediu orçamento, encomendou papel e realizou pagamentos para a impressão do livro Poesia Nova que por razões desconhecidas não se fez. Por essa altura manda brochar «com todo o cuidado e capa dobrada à francesa», oitocentos livros a um cruzeiro cada.

No início do ano de 1949 troca o Hotel S. Bento pela Pensão Internacional, na Rua Anhangabu, no que parece uma despromoção residencial. Porém, logo nesse ano o proprietário move-lhe um processo na 5ª Vara Criminal por estar sem pagar até Abril. Segundo os autos o hóspede apresentou-se como pessoa de posses, arquitecto, amigo de artistas e políticos. Tudo grandes nomes, mas não tinha um cruzeiro pelo que comeu e bebeu sem pagar. António Botto contestou sem conseguir impressionar o juiz que lhe deu 15 dias de prisão, ao que tudo indica remíveis a dinheiro evitando assim que o poeta caísse no xelindró. Desta conturbada encruzilhada levanta asa para ir poisar no Hotel Ipiranga, na Rua 24 de Maio, nº 275, onde ocupará o apartamento 31 até praticamente ao dia do seu regresso ao Rio de Janeiro. Deixa soltas as pontas da sua estadia visto que o proprietário, Eugénio Bissachi, regista em carta timbrada que o casal deixou um rádio, um amplificador de discos, gravuras e utensílios no valor de 7.500 cruzeiros que ficam por conta dos pagamentos em atraso.

São Paulo, anos 50.

Foi sempre assim, um teso caloteiro, cravando uns e outros e contribuindo para que se criassem a seu respeito as mais mirabolantes histórias e situações caricatas de amigos que o evitavam para não serem cravados. Sem necessidade, diga-se, pelo menos em São Paulo onde teve trabalho regular, espectáculos, sessões de autógrafos, actividades recompensadas para uma situação financeira certamente não invejável mas pelo menos razoável. Que raio te passa pela cabeça, António, como perguntaria o teu amigo Erico Braga. A vida nem era madrasta nessa altura embora Carlos Drumond de Andrade escrevesse mais tarde, no jornal Correio da Manhã (02. Fevereiro. 1956), referindo-se à estadia em São Paulo «onde lhe aconteceram coisas desagradáveis». Suponho eu, mais por culpa tua que dos outros.

Apertado em tais deambulações financeiras os direitos de autor, importante fonte da receita do poeta, tomam papel fundamental e urgente nos contactos que desenvolve com a Sociedade de Autores em Lisboa. Os mapas de pagamentos que lhe são enviados, com o valor de direitos pagos confirmam o bom estatuto artístico de António Botto e uma conta-corrente em que ele, por adiantamentos efectuados, em vez de credor era devedor da bonita soma de trinta e três contos, mais dez de uma letra em carteira, saque de João Villaret endossado a Erico Braga. É óbvio que apesar das colaborações e recitais com venda de bilhetes as coisas começam a complicar-se para o casal. Os jornais continuam dedicando-lhe espaço com louvores e artigos à sua obra, assinados por prestigiados nomes das letras brasileiras e na Galeria Domus tem lugar uma exposição dos seus desenhos (Botto desenhava bem e isso ainda lhe vai valer como veremos). De modo algum ele está sendo socialmente depreciado até porque histórias de dívidas a hotéis diluem-se no tempo, tomando a versão mais conveniente para a sua imagem. A questão é outra: a retoma de um certo êxito inicial é como a derradeira ilusão do moribundo incapaz de vislumbrar o anúncio da tragédia. Inadaptado ao gigantismo de São Paulo, por comparação com o maneirismo de Lisboa, o tempo de permanência torna-se curto de quatro anos para o autor de Cartas que Me Foram Devolvidas.

A cidade aprisiona o pensamento na descomunal malha de edifícios. Torna-se sôfrega, esmagadora, irrespirável. Onde está o Tejo das pequenas embarcações no vaivém do rio? E a noite lisboeta feita de um céu de pérolas? A agitação suave da Baixa escutada num murmúrio carinhoso? São Paulo passa num instante: é «uma terra disparatada, sem harmonia e sem beleza! Uma estrumeira de vícios e onde o Diabo prefere passar a noite a mijar» (BNL-espólio de A.B). São Paulo não tem céu, farrapos só. Pedaços aqui e além recordando que as estrelas existem.
(continua)
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«Meu amor na despedida» é um fado, com letra de António Botto, cantado pelo jovem fadista Pedro Moutinho. Atenção:

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